domingo, 26 de junho de 2011

A HISTÓRIA DE VITO MIRACAPILLO


   Expulso do Brasil em 1980, durante a ditadura militar -sob a mesma lei que foi utilizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para tentar banir o jornalista Larry Rohter-, o padre Vito Miracapillo, 59, hoje vive na cidade de Canosa, no sul da Itália, à espera da anistia para poder voltar definitivamente ao país.   Miracapillo, que vivia no Brasil desde 1975, foi expulso do país porque, em setembro de 1980, se recusou a celebrar uma missa comemorativa pela Independência do Brasil, em Ribeirão (PE) -onde era pároco-, alegando que não acreditava que o povo brasileiro fosse independente. O padre foi denunciado pelo deputado Severino Cavalcanti (PDS-PE) ao ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel.Em 15 de outubro, o então presidente, o general João Baptista Figueiredo, assinou a expulsão, usando como fundamento legal o recém-aprovado Estatuto do Estrangeiro (a lei nº 6.815), a mesma base legal para expulsar Rohter.Desde que foi banido, Miracapillo só pôde voltar em 1993, ainda apenas como turista, quando o presidente Itamar Franco revogou o decreto de expulsão. Após a decisão de Itamar, o padre disse que já veio ao país cerca de dez vezes. "Eu ainda estou ligado ao povo da paróquia, da diocese, e ainda há todos os amigos, que, quando vinham para a Itália, passavam pela minha casa para me dar solidariedade." No entanto, ele ainda não pode permanecer no país porque aguarda a anistia a ser concedida pelo Supremo. "Triste" Miracapillo relembrou ainda o momento da expulsão e classificou o episódio como "triste". FRASE "É claro que a expulsão sempre compromete a história e a vida de uma pessoa" PADRE VITO MIRACAPILLO - fonte  Folha de S. Paulo

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Padre expulso em 1980 lamenta eleição de Severino

Apontado como agitador pelo deputado, Vito Miracapillo não pode exercer atividade no país

ALEXANDRE ELMI E FABÍOLA BACH

Na cidade de Canosa, sul da Itália, a notícia da eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara dos Deputados no Brasil decepcionou um pároco italiano de 57 anos.

Interessado na realidade brasileira, que acompanha por meio da TV e de jornais remetidos por amigos, o padre Vito Miracapillo tem uma viva lembrança de Severino. Deputado estadual pelo PDS em Pernambuco em 1980, o parlamentar requereu do governo federal que Miracapillo fosse expulso do país sob acusação de subversão. O presidente João Figueiredo (1979-1985) atendeu ao pedido.

- Acho que ele não é pessoa mais indicada para levar o Brasil a um avanço de propostas democráticas - disse Miracapillo, na manhã de ontem, de Canosa, em entrevista exclusiva a Zero Hora.

Na conversa de 30 minutos, Miracapillo recordou o episódio, um dos momentos de maior tensão entre a Igreja Católica e o regime militar (1964-1985). Com o português perfeito e a fala calma, o sacerdote relembrou a crise que resultou no decreto de expulsão, assinado em 15 de outubro de 1980 por Figueiredo. Com base em um artigo do Estatuto dos Estrangeiros, Miracapillo foi afastado da paróquia de Ribeirão (PE) e expulso sob a acusação de "insuflar trabalhadores rurais à invasão de terras".

- Ele (Severino) me denunciou como subversivo, agitador e comunista - disse.

Parlamentar pernambucano diz que faria tudo novamente

Miracapillo se recusou a rezar uma missa oficial no dia 7 de setembro de 1980. Alegou que não poderia celebrar o Dia da Independência enquanto os brasileiros não se tornassem verdadeiramente independentes - uma referência às condições de vida da população pobre que irritou os políticos da região, entre os quais Severino.

A expulsão de Miracapillo teve repercussão internacional. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que confirmou a expulsão por unanimidade. Anistiado em 1993 pelo presidente Itamar Franco (1992-1994), Miracapillo continua impedido pelo STF de exercer atividades no Brasil. Não desistiu, porém, de lutar na Justiça pela recuperação desse direito.

Zero Hora entrou em contato com o gabinete de Severino, em Brasília, para comentar o caso. Por meio da assessoria, o deputado disse que mantém as declarações dadas à revista IstoÉ, em edição desta semana: não está arrependido e faria tudo novamente.

- Ele (Miracapillo) era italiano. Lugar dele é lá na Itália e não aqui no Brasil. Exorbitou e foi por isso que consegui a expulsão dele - afirmou Severino à revista.

- Na época da expulsão do padre Vito Miracapíllo, o então presidente do recém-criado PT, Luiz Inácio Lula da Silva, se opôs publicamente à medida, condenando a perseguição a um dos defensores da reforma agrária na região canavieira de Pernambuco. Lula criticou a decisão do regime militar, classificando-a como uma prova "da escalada de intolerância" que assolava o país no início da década de 80.

- Vinte e quatro anos depois, já na condição de presidente da República, Lula usaria o mesmo artigo do Estatuto dos Estrangeiros para tentar expulsar do país o jornalista americano Larry Rohter, do jornal The New York Times. O motivo foi uma reportagem de Rohter sobre o suposto alcoolismo de Lula.

Entenda o caso

Quem é Miracapillo - O religioso nasceu na cidade de Andria, na região da Puglia, Itália, em 15 de abril de 1947. Chegou ao Brasil no dia 31 de outubro de 1975, se apresentando à diocese de Palmares (PE), com visto de permanência no país. No dia 4 de janeiro de 1976, foi nomeado vigário de Ribeirão (PE), distante 87 quilômetros de Recife, na Zona da Mata. Ficou na cidade até embarcar de volta para a Itália no dia 31 de outubro de 1980. 

Por que Miracapillo foi expulso - Ligado à ala progressista da Igreja Católica, o padre Miracapillo atuava junto a camponeses de Ribeirão (PE). A atividade do religioso irritava latifundiários e políticos locais. 

Sob o argumento de que o povo brasileiro ainda não havia conquistado independência, Miracapillo se recusou a rezar missas oficiais nos dias 7 de setembro, Dia da Pátria, e 11 de setembro de 1980, data de emancipação de Ribeirão.

Sob a liderança de Severino Cavalcanti, então deputado estadual pelo PDS - partido que sucedeu a Arena, sigla de sustentação da ditadura militar (1964-1985) -, foi apresentada uma denúncia ao ministro da Justiça à época, Ibrahim Abi-Ackel. Miracapillo foi considerado "pessoa nociva aos interesses nacionais" em decisão administrativa do ministério.

A denúncia de Severino, aceita pelo ministério, resultou no decreto de expulsão do país, assinado no dia 15 de outubro de 1980 pelo presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985). O fundamento foi um artigo do recém-aprovado Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815), que impede os estrangeiros no país de fazer política.

Os advogados do religioso levaram, em vão, a batalha pela permanência de Miracapillo no país ao Supremo Tribunal Federal (STF). A sessão do STF de 30 de outubro de 1980 julgou simultaneamente três habeas corpus impetrados a favor de Miracapillo. A partir do parecer negativo do ministro Djaci Falcão, o STF recusou os pedidos por 11 votos a zero.

Miracapillo embarcou no dia 31 de outubro de 1980 de volta a Roma, Itália. Em 1993, o presidente Itamar Franco revogou o decreto assinado por Figueiredo, mas o padre aguarda a reversão da sentença pelo STF para poder voltar a exercer normalmente atividades religiosas no país.

"Continuo condenado"

Entrevista: Vito Miracapillo, pároco em Canosa (Itália)

O padre Vito Miracapillo conversou durante 30 minutos com Zero Hora, ontem pela manhã, por telefone, de Canosa, sul da Itália. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Zero Hora - O senhor foi expulso do Brasil em 1980. O que fazia na época?

Vito Miracapillo - Era pároco da cidade de Ribeirão, em Pernambuco. No trabalho pastoral, a gente ajudava os camponeses a alcançar o direito que tinham, desde 1964, à posse da terra (previsto no Estatuto da Terra), e que até 1980 não tinha sido reconhecido. Ajudava também o pessoal a alcançar os direitos do trabalho enquanto cidadãos e seres humanos, além de todo o trabalho de evangelização que se fazia no campo.

ZH - O senhor tinha vinculação com a ala progressista da Igreja Católica?

Miracapillo - Trabalhava com a pastoral da Igreja em Recife e com as linhas do Concílio Vaticano II, de Puebla e de Medellín (conferências do episcopado latino-americano). Desenvolvíamos o trabalho pastoral que a Igreja, naquela época, desejava.

ZH - Por que o senhor foi expulso do país no dia 31 de outubro de 1980?

Miracapillo - Não aceitei celebrar missa do jeito que as autoridades queriam, no dia 7 de setembro e no dia 11 de setembro, que era a data de emancipação do município. Escrevi para o prefeito, que impunha essas missas. Numa reunião que fez com todos os líderes da cidade, para a qual não convidou propositalmente nenhum representante da paróquia, porque já estavam perseguindo as pessoas do campo onde fazíamos a evangelização, impôs essas missas. Respondi dizendo que não podia aceitar, na forma e no horário pedidos, e também porque o povo não era independente, estava reduzido à condição de pedinte, sem proteção aos direitos.

ZH - O senhor lembra de alguma hostilidade antes desse episódio?

Miracapillo - De vez em quando, sofria, sim, ameaças por parte de latifundiários e capangas, em função do trabalho que a gente fazia no campo. Nunca liguei para essas coisas.

ZH - Que papel o então deputado estadual Severino Cavalcanti (na época no PDS) teve no movimento pela expulsão?

Miracapillo - Ele me denunciou como subversivo, agitador e comunista, embora a gente nunca tenha se encontrado. Nem no tempo em que eu estava lá e nem quando me foi permitido entrar no país, a partir de 1993. Foi ele quem levantou a denúncia contra mim e o trabalho que eu fazia. Depois, o regime aproveitou para demonstrar força contra a Igreja naquela conjuntura. O que disseram é que fui expulso por ter me negado a rezar missa pela Independência, o que não é verdade. Naquele ano, o dia 7 de setembro caiu no domingo e eu rezei três missas pela Independência. Não celebrei no sentido que queriam. Naquele ano, o lema do Dia da Pátria era "A Independência Somos Todos Nós". Claramente, o pessoal que morria de fome não podia ser chamado de independente. Para mim, seria mais uma comédia do que uma celebração.

ZH - Que tipo de influência política o deputado Severino Cavalcanti exercia na região de Ribeirão?

Miracapillo - Ele estava ligado aos latifundiários e levava adiante a política daquele tempo. Expressava na região a orientação do regime militar.

ZH - O senhor sabe que Severino foi eleito presidente da Câmara dos Deputados, terceiro cargo mais importante do país, e que pode assumir a Presidência da República em caso de impedimento do presidente e do vice?

Miracapillo - Soube, porque amigos me mandaram jornais e li sobre essas coisas. Estou fora do Brasil faz tempo, não estou por dentro da política, mas acho que ele não é a pessoa mais indicada para levar o Brasil a um avanço de propostas democráticas.

ZH - Severino comentou há poucos dias o episódio da sua expulsão e disse que faria tudo novamente. O senhor faria tudo novamente?

Miracapillo - Naqueles termos, é claro. Quando rezei missa com as comunidades naquele dia, distribuí uma folha com os pedidos de oração e na qual coloquei algumas orientações que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tinha. Coloquei o lema da Independência, "A Independência Somos Todos Nós", mas coloquei também um pergunta "Quando?". E respondemos. Quando crescemos como povo em liberdade e participação. Quando temos os nossos direitos respeitados. Quando lutamos contra a marginalização, que é a negação do bem comum. Quando podemos escolher com liberdade os nossos governantes. Quando resistimos aos privilegiados que se beneficiam com o despojamento e a miséria da maioria. E transformamos essas afirmações em orações, dizendo: "Dai-nos força, senhor, para lutar pela independência que se constrói no dia-a-dia". Essas coisas foram objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal, e fui condenado por subversão e atentado à segurança nacional e à ordem pública e social.

ZH - Um pedido de habeas corpus em seu favor foi derrotado por 11 votos a zero pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Como o senhor interpretou a decisão do Supremo?

Miracapillo - O Supremo era a expressão do regime militar. Na época, até o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil tomou posição a meu favor e disse claramente pelos jornais que o meu caso era um caso-teste para ver se o Judiciário era realmente independente do Executivo. Mas não foi assim, porque todos pertenciam ao regime. Apesar dos habeas corpus, eu aguardava uma decisão que tendia a ser negativa para mim. Depois, houve muita coisa positiva, porque o governo teve de dar a terra aos camponeses, e Severino foi apagado politicamente na região.

ZH - A Igreja, à época, fez o que era possível para evitar a sua expulsão?

Miracapillo - Naquela conjuntura, sim. O problema é que havia, na base da lei pela qual fui expulso, a possibilidade de mandar embora não só os missionários e padres estrangeiros, como todos os refugiados políticos da América do Sul. Até o papa João Paulo II criticou a lei quando esteve no Brasil. Fui a primeira vítima daquela lei. O problema é que continuo condenado.

ZH - O senhor hoje já garantiu o direito de retornar ao país?

Miracapillo - Deputados e advogados tentaram revogar a minha condição, mas até hoje não houve nada de positivo.

ZH - O ex-presidente Itamar Franco não o anistiou?

Miracapillo - Ele só retirou o decreto de Figueiredo. Posso entrar no país como turista, posso ficar no máximo três meses, mas depois devo sair.

ZH - O senhor tem interesse em voltar ao país?

Miracapillo - Claro, poderia voltar, não tenho nada contra o Brasil. Naquela época, o país todo ficou ao meu lado.

ZH - O senhor tem contato com a Igreja no Brasil e com o município de Ribeirão?

Miracapillo - Estou em contato. Praticamente todo ano visito o povo da região.

ZH - Que lembranças o senhor tem do agreste pernambucano?

Miracapillo - Em termos da relação com o povo, tenho uma lembrança ótima. O problema está na situação de fome e miséria que continua perdurando na região. Há melhoria na urbanização das cidades, mas isso chegou a uma pequena camada social, não se generalizou pela região.

ZH - Qual é sua opinião sobre um católico (Severino) pedir a expulsão de um integrante da Igreja Católica do país?

Miracapillo - A avaliação dessas coisas pertence só a Deus. Cada um pode dizer e passar pelo que quiser ser. Quando cheguei à região, até os latifundiários se diziam catolicíssimos. O problema é que ser católico é não apenas viver a fé diante de Deus, mas concretizá-la na vida fraterna com os outros. Onde há fome, miséria e direitos desrespeitados, o católico não pode ficar só olhando. Fonte: Zero Hora

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